Assim como um carro velho e mal cuidado, nunca se sabe quando uma lei de trânsito vai pegar no Brasil. Quase sempre, ainda que ganhe um bom empurrão inicial, logo enguiça devido a problemas como a resistência cultural dos motoristas, falhas de fiscalização e impunidade.
Uma breve revisão das principais novidades na legislação viária do país nos últimos anos revela que praticamente nenhuma é seguida à risca.
Prestes a completar dois anos da adoção da chamada Lei Seca e a colocar em vigor a nova regra para as cadeirinhas infantis, o país tem poucos exemplos positivos. O cinto de segurança, que costumava ficar pendurado ao lado do motorista, hoje faz parte da rotina da maior parte dos condutores e passageiros. Porém, mesmo esse equipamento não é usado no nível ideal: no ano passado, foram aplicadas 105 mil multas por falta do cinto no Rio Grande do Sul.
A tolerância zero à embriaguez, apesar do impacto inicial, também tem dificuldade para embalar. Diariamente, pelo menos 11 motoristas são flagrados nas rodovias gaúchas. Em compensação, o número de mortos em acidentes em vias municipais e estradas, de janeiro a maio, aumentou 5% em comparação com o mesmo período de 2008, quando ainda não havia a Lei Seca.
Cinto de Segurança
l A norma: o artigo 65 do Código de Trânsito Brasileiro considera obrigatório o uso do cinto
por condutor e passageiros, salvo situações especiais como veículos de transporte de passageiros em que é possível viajar em pé. Não usálo, conforme o artigo 167, resulta em infração grave e retenção do veículo até a colocação do equipamento pelo infrator.
l Aplicação: pegou. Principalmente para as pessoas que se sentam nos bancos dianteiros, o uso do cinto de segurança passou a ser a regra, e sua ausência, a exceção – diferentemente do que ocorria duas décadas atrás. Quem ainda não tem o costume de usar – sobretudo nos bancos traseiros – corre sério risco de levar multa. No ano passado, o Detran/RS contabilizou 105.231 punições pela falta do cinto – o equivalente a 2,7% dos motoristas gaúchos. É o Cinto de segurança.
De quem é a culpa?
A estrutura de fiscalização e punição no país, até o momento, não foi capaz de fazer frente à
resistência do motorista brasileiro em cumprir o que está na lei. Especialistas divergem, porém, se a principal parcela de culpa recai sobre a fiscalização ou sobre a dificuldade dos condutores em obedecer normas.
Um dos responsáveis pela elaboração do Código de Trânsito Brasileiro, o advogado Cyro Vidal
resume o que considera ser o principal empecilho à legitimidade da legislação viária nacional:
– Não tem nada de questão cultural dos nossos motoristas. Em qualquer país é igual. A diferença é que aqui falta fiscalizar e punir de maneira eficaz. O comandante do Comando
Rodoviário da Brigada Militar (CRBM), tenente-coronel Edar Borges Machado, contrapõe a essa visão um exemplo cotidiano.
– Quando passa na frente do posto da polícia, o motorista se comporta. Quando sai dali, é um
Deus nos acuda. Então, por medo da autuação, ele obedece à lei. Mas, só pelo medo de matar toda a sua família, não obedece. Jamais poderemos estar em todos os lugares a toda hora – desabafa. Diza Gonzaga, presidente da Fundação Thiago Gonzaga, aponta a necessidade de uma maior responsabilização conjunta, tanto das autoridades quanto de motoristas, amigos e familiares.
– Não está ocorrendo a fiscalização rigorosa que deveria, mas está na hora de a sociedade se
dar conta de que uma pessoa não pode dar uma festa e deixar seus amigos ou parentes saírem dirigindo bêbados – diz. O quarto tipo de infração mais punida pelas autoridades.
l Motivo: o uso do cinto de segurança foi disseminado pela insistência na fiscalização
ao longo do tempo e pela conscientização popular de que pode reduzir em mais de 45%
o risco de morte. No banco traseiro, segundo o diretor-técnico do Detran gaúcho, Ildo Mário
Szinvelski, sua utilização não é tão frequente porque os passageiros não assimilaram completamente o risco que correm de serem lançados para a frente em caso de batida.
Legendas Pegou: a regra é obedecida pela grande maioria, ainda que não seja unânime, e o descumprimento representa risco real de ser punido.
Não pegou: a norma foi derrubada, ou é largamente descumprida e raramente resulta em punição.
Pegou parcialmente: a obediência é apenas razoável, e o risco de punição é mediano.
Farol de xenon
l A norma: o Contran estabeleceu que o equipamento deve ser instalado com recursos
para não ofuscar outros motoristas.
lAplicação: pegou parcialmente. Os modelos que têm os faróis de xenon como item
de fábrica atendem às especificações de segurança, mas os kits vendidos a preços mais
acessíveis costumam desrespeitar a regra. A alteração de características originais dos veículos,
o que inclui o sistema de iluminação, é o segundo tipo de infração mais comum no
Estado, conforme o Detran. De janeiro a maio, foram 68,3 mil multas.
l Motivo: a principal razão para a persistênci do uso inadequado do farol de xenon, segundo
o especialista em legislação de trânsito Cyro Vidal, é a fragilidade da fiscalização.
Primeiros socorros
l A norma: a partir de janeiro 1999, todos os veículos deveriam contar, na lista de equipamentos considerados obrigatórios, com um kit de primeiros socorros. A intenção era facilitar o socorro emergencial a acidentados.
l Aplicação: não pegou. Inicialmente, chegou a haver uma corrida a farmácias e mercados a fim de comprar o kit. Pouco mais de três meses depois de entrar em vigor, porém, a medida foi revogada pela Lei 9.792, de 14 de abril de 1999.
l Motivo: motoristas e especialistas em saúde se rebelaram contra a iniciativa, considerando-
a uma bobagem e um gasto inútil para os milhões de condutores brasileiros.
Além de ter virtualmente nenhuma utilidade em caso de acidente sério, o uso inadequado
do material poderia até agravar a situação dos feridos.
Primeiros socorros - Kit polêmico
l Dois rolos de ataduras de crepe
l Um rolo pequeno de esparadrapo
l Dois pacotes de gase
l Uma bandagem de tecido de algodão
do tipo bandagem triangular
l Dois pares de luvas de procedimento
l Uma tesoura de ponta romba
(sem ponta)
Farol nas estradas
l A norma: o Rio Grande do Sul chegou a ter uma legislação determinando o uso do farol baixo nas rodoviais estaduais mesmo durante o dia, em 1997, a fim de facilitar a visualização dos veículos. Porém, a lei maior, o Código de Trânsito Brasileiro, não previu essa obrigação. O
Contran emitiu apenas uma resolução recomendando o uso e orientando as autoridades locais a estimularem esse hábito.
l Aplicação: não pegou. Em solo gaúcho, a queda da lei específica e a falta de qualquer possibilidade de fiscalização ou punição fazem com que o uso do farol baixo seja exceção.
– São muito poucos os que usam
– afirma o comandante do CRBM, tenente-coronel Edar Borges Machado.
l Motivo: impossibilidade de fiscalização ou punição e inexistência de campanhas eficientes de estímulo ao uso do farol baixo como instrumento de aumento da segurança nas rodovias.
Telefone celular
l A norma: o artigo 252 do Código de Trânsito Brasileiro estabelece que é infração média e passível de multa dirigir o veículo com apenas uma das mãos ou usando fone conectado a telefone celular.
l Aplicação: não pegou. Desde o início do ano até maio, o Detran contabilizou 34.152 multas aplicadas no Estado por descumprimento do artigo 252 (o uso do celular é um dos motivos mais comuns).
l Motivo: muitos motoristas acreditam que não serão flagrados pela fiscalização.
Como a infração é de nível médio, uma eventual punição também não parece suficiente para mudar o hábito.
– Alguns motoristas ainda fazem uso do aparelho enquanto dirigem – afirma o inspetor
da PRF Jorge Nunes.
Película
l A norma: o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) estabeleceu um limite para a perda
de luminosidade provocada pela instalação da película nos veículos: deve garantir, no mínimo,
75% de transmissão luminosa através do vidro do parabrisa e 70% dos demais vidros indispensáveis à dirigibilidade, como os laterais dianteiros.
l Aplicação: não pegou. O uso de película mais escura do que o estabelecido pela legislação é comum em todo o país.
l Motivo: fragilidade da fiscalização combinada ao uso disseminado da película como item de segurança para evitar assaltos à noite. Além do grande número de veículos com película escura, o que dificulta a vigilância, ainda não há no país equipamentos regulamentados para medir precisamente o grau de transparência da película em blitze, conforme o diretortécnico do Detran, Ildo Mário Szinvelski.
Lei seca
l A norma: desde 20 de junho de 2008, a legislação não admite que o motorista conduza veículo automotor sob influência de qualquer quantidade e álcool – a chamada Lei Seca –, sujeitando- o a infração gravíssima, multa, suspensão do direito de dirigir e até prisão.
l Aplicação: pegou parcialmente. De início, a medida causou impacto e chegou a reduzir em 40% os atendimentos de urgência. Atualmente, um grande número de motoristas desrespeita a lei, mas segue sujeito à fiscalização. De janeiro a maio, o Comando Rodoviário da BM e a PRF flagraram, por dia, uma média de 11 motoristas embriagados em rodovias.
l Motivo: segundo a presidente da fundação Thiago Gonzaga, Diza Gonzaga, nos primeiros meses da nova lei os condutores eram mais temerosos de serem flagrados e punidos. Com o tempo, e a limitação das blitze, essa sensação foi diminuindo.
Novo sinal na faixa
l A norma: este ano, a prefeitura de Porto Alegre estabeleceu um novo sinal a fim de facilitar a travessia de pedestres em faixas de segurança onde não houver sinaleira – representado pelo braço esticado com a mão aberta. Ao ver o sinal, os motoristas devem ceder a passagem.
l Aplicação: pegou parcialmente. O número de mortes por atropelamento caiu
17% na Capital depois da adoção do novo sinal. O número total de atropelamentos, porém, passou de 811 para 881.
l Motivo: o diretor de trânsito da Empresa
Pública de Transporte e Circulação, Vanderlei Capellari, afirma que o impacto da campanha pode ser medido pela redução significativa no número de mortes por atropelamento na Capital. Ainda que nem todos façam o sinal, a divulgação ajudou a elevar o respeito dos condutores pela faixa.
Acidentes na capital:
Mortes por atropelamento 52 43 -17%
Atropelamentos 811 881 8%
Mortes em geral 111 108 -3%
Acidentes 15.316 15.853 3,5%
Confira variação na violência do trânsito porto-alegrense em períodos antes e depois do novo sinal:
Acidentes na Capital
Antes* Depois** Variação
*Setembro de 2008 a abril de 2009
**Setembro de 2009 a abril de 2010