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sexta-feira, 7 de novembro de 2008

A Guerra do trânsito

A GUERRA DO TRÂNSITO

Eng. Walter Kauffmann Neto



O homem é um ser nômade por natureza. Desde os tempos pré-históricos, sua sobrevivência esteve intimamente ligada aos movimentos migratórios de tribos inteiras pela busca de alimento e proteção. Com a evolução da civilização, foi criado o automóvel e, com ele, uma infinidade de outros veículos, que só puderam ser utilizados com a construção de uma estrutura giantesca de vias, estradas, ruas, regras e acessórios. Este conjunto é responsável pelo transporte de uma massa de pessoas, animais e mercadorias, que, diariamente, desloca-se para diversos pontos do planeta. A gigantesca movimentação de bens e seres humanos forma o que genericamente denominamos de Trânsito.


Os setores relacionados ao Trânsito compõem-se na maior força econômica do planeta em termos de geração de valores econômicos e empregos. Porém, a despeito de sua grande importância, é no Trânsito que ocorre o maior número de mortes, superando, inclusive, a maioria das guerras conhecidas. O Acidente de Trânsito é o grande vilão, não só de óbitos, mas também de ferimentos graves, inclusive com seqüelas, e horas de trabalho perdidas. Embora nem sempre se perceba, é um problema altamente relevante de saúde pública, devendo ser tratado como doença social que vitima 1,4 milhões de pessoas por ano no mundo, segundo o Transportation Research Board (1990), ficando apenas um pouco atrás de doenças do coração (1,5 milhões) e do câncer (1,8 milhões) como causa mortis. E, como agravante do prejuízo social e econômico que causa, concentra seus óbitos, ao contrário da outras doenças, na camada mais jovem da população.


Para compreender o evento Acidente é fundamental a análise de como funciona o fenômeno Trânsito. Três elementos interagem, inseridos em um Contexto Sócio-Comportamental que forma o Trânsito: O Homem, a Via e o Veículo. O Acidente é conseqüência de falha de um ou mais componentes do Trinômio. O diagrama abaixo mostra a participação de cada item na triologia do Acidente, destacando-se a ênfase do fator humano no evento. Observa-se que o Contexto Sócio-Comportamental está sempre presente.

Apesar da alta relevância do fator humano no Acidente de Trânsito, o evento é mais complexo do que divulgado exaustivamente pela mídia nacional. Há uma tendência de focar somente o aspecto do comportamento individual do motorista nos sinistros, esquecendo-se dos papéis de vitais da iniciativa privada, da sociedade e, principalmente, do Poder Público.

Uma vez que os Acidentes ocorrem pela falha de pelo menos um dos componentes do Trinômio dentro do Contexto Sócio-Comportamental, é necessário conhecê-los profundamente para que se possam determinar as ações necessárias para minimizar estes tipos de ocorrências.

O VEÍCULO

A Engenharia Moderna produz um grande número de veículos de transporte. Seu maior expoente é o Automóvel, o qual divide espaço com camionetes, caminhões, ônibus, motocicletas, tratores, escavadeiras, trens, entre outros meios.

O veículo pode ser considerado adequado quando está mecanicamente apto a trafegar na velocidade permitida e realizar desvios necessários, inclusive frenagens e manobras evasivas, em situações de perigo. O Automóvel é um sistema mecânico complexo, que tem como objetivo a satisfação das necessidades de mobilidade, conforto e segurança dos usuários. É construído segundo normas, regulamentos e legislação.

A responsabilidade de sua adequação e segurança recai em vários segmentos da sociedade, destacando-se:

INICIATIVA PRIVADA: Os fabricantes de veículos tem responsabilidade direta no produto final de seu setor. Espera-se que sejam utilizadas as modernas técnicas de Engenharia para a construção de automóveis cada vez mais seguros. A incorporação de inovações como Air Bags, Cintos de Segurança Pré-tensionados, Freios ABS, Barras de Segurança, Carroceria de Deformação Progressiva, entre outros, colabora com a evolução da segurança e confiabilidade dos veículos. Porém, a responsabilidade do Setor é ainda mais ampla. Os produtos devem passar por testes constantes, tanto para aperfeiçoamento como para confirmação da confiabilidade de cada item. O treinamento da rede de manutenção também é fundamental para que a frota veicular seja mantida em condições, sem oferecer risco ao usuário.

USUÁRIO: O usuário do veículo automotivo tem a responsabilidade de conhecer profundamente o bem que utiliza e os recursos tecnológicos que ele oferece. Além disto, deve seguir corretamente as instruções de manutenção e a legislação vigente, para que seu automóvel ofereça condições máximas de segurança e trafegabilidade. Ainda, como membro da sociedade, deve exigir os seus direitos, cobrando responsabilidade da iniciativa privada e do Poder Público no que diz respeito às regras para a construção e manutenção de veículos e vias de tráfego. Pode formar grupos, ONGs ou outras iniciativas coletivas para fazer valer seus direitos.

PODER PÚBLICO: O Poder Público, dentre outras funções, deve exercer sua função legisladora e fiscalizadora. Deve obrigar, por exemplo, a indústria a cumprir com responsabilidade a produção de veículos seguros. Também deve promover iniciativas que visem à conservação da frota veicular, para que ofereça segurança à população. Este papel não deve ser passivo e centrado somente na legislação e fiscalização punitivas; pelo contrário, medidas ativas, tais como desoneração dos impostos na fabricação dos itens de segurança veicular, permissão de depreciação acelerada de veículos, incentivos na renovação da frota, coibição de uso de veículos sem a devida manutenção, entre outras, podem e devem ser adotadas.


O SER HUMANO

O Condutor é normalmente responsabilizado pelos acidentes de trânsito, uma vez que tem participação direta no evento. É incontestável a relevância de seu comportamento, treinamento e habilidade para uma direção segura. A formação de Motoristas e Pedestres corretamente instruídos é uma tarefa conjuta da sociedade, demandando ações e comportamentos éticos dos três setores.

INICIATIVA PRIVADA: Os fabricantes de automóveis devem basear suas estratégias de vendas de modo a privilegiar a direção segura e a responsabilidade na condução dos veículos. Quando a mídia de vendas associa o produto à alta velocidade e às infrações de trânsito, colabora para criar uma consciência coletiva deturpada em relação à direção defensiva. A imprensa e a mídia, pelo contrário do que acontece hoje, deveriam colaborar para a formação do caráter social do condutor. A eficácia de ações educativas de conscientização, como, por exemplo, a de um rápido comercial sobre direção defensiva, é completamente anulada com a apresentação de um longo filme cujo tema centra-se na exaltação “heróica” à violência no Trânsito.


USUÁRIO: Cabe a cada cidadão, motorizado ou não, assumir uma posição ativa, participando de treinamentos, debates e discussões e fazendo valer seus direitos e exigências para um Trânsito mais seguro. Como já mencionado, o indivíduo tem, isoladamente, alto percentual de participação no evento acidente; todavia, mostra muito pouca influência no comportamento global. Assim, mesmo sendo, na maioria das vezes, culpado pelo sinistro, é uma vítima do Contexto Sócio-Comportamental em que está inserido, o que não o exime, contudo, de suas responsabilidades.


PODER PÚBLICO: O Poder Público tem a responsabilidade de Legislar e Normatizar o comportamento individual e coletivo no trânsito. Não obstante, dá muito pouca atenção a esta incumbência, concentrando-se basicamente em promover Leis direcionadas a punições pecuniárias, com clara finalidade arrecadatória e não sócio-educacional. Dois flagrantes exemplos deste tipo de atuação: a proposição de cobrança de multas em valor proporcional ao do veículo e a medida de abatimento no valor das penalidades por excesso de velocidade, de modo a “facilitar” o pagamento, por parte do infrator, para evitar a inadimplência.


Além de legislar, é fundamental a participação do Poder Público na Educação, oferecendo medidas que visem a modificar a consciência social, formando cidadãos que trabalhem ativamente na busca de mais segurança e salubridade nas atividades relacionadas ao Trânsito. Motoristas e Pedestres educados e conscientes são menos sucetíveis a acidentes.


Por fim, o Estado não pode deixar de Fiscalizar e Punir. Mais do que investir em equipamentos de emissão automática de multas para garantir o pagamento da folha funcional do Departamento de Trânsito das cidades, o Estado tem o dever de coibir a prática de crimes de trânsito através de fiscalização severa e punição exemplar dos infratores. Nenhuma legislação, por mais perfeita que seja, resiste a um Judiciário ineficiente na aplicação das Leis. A impunidade e a indolência apenas servem para dividir a população em dois grupos: o dos infratores, que sabem que não vão ser punidos ou responsabilizados por suas faltas e crimes e o dos cidadãos escrupulosos, desiludidos e desesperançosos com o Poder Público.




A VIA

A Via Pública, mesmo sendo responsável direta por quase um terço dos eventos de Acidentes, é, talvez, o fator mais negligenciado. Praticamente não há, nas esferas Federal, Estadual e Municipal, uma política efetiva de desenvolvimento viário. A maioria dos planos de construção de vias parte de iniciativas isoladas. Embora alguns projetos mereçam reconhecimento, por apresentarem soluções bem construídas e interessantes, a maioria tem apenas cunho eleitoreiro, sendo desprovida de um sério planejamento de Engenharia de Trânsito. A manutenção da maior parte das estradas que compõe a malha viária brasileira foi repassada à iniciativa privada, desobrigando o Estado de sua manutenção e ampliação.

Assim, novamente analisam-se os deveres dos três setores do trinômio envolvidos no evento Trânsito:

INICIATIVA PRIVADA: Em relação à malha viária nacional, cabe à iniciativa privada um papel de alta relevância. As empresas concessionárias de rodovias devem assumir comportamentos extremamente éticos e responsáveis, promovendo a correta manutenção e modernização dos bens públicos concedidos. A sua remuneração deve ser justa, de modo a não onerar demasiadamente a circulação pública. Soma-se ainda a necessidade de um grande cuidado ambiental no desenvolvimento de suas atividades.

Como fabricantes de veículos automotores, a iniciativa privada deve também primar pela ética e responsabilidade social, incorporando tecnologias e cuidados para que seus veículos causem mínimos danos e desgastes à via pública e ao meio ambiente.

As empresas construtoras, que prestam serviços diversos em vias públicas, têm obrigações sérias na utilização de modernas técnicas de Engenharia de Construção e Trânsito, com a finalidade de oferecer vias cada vez mais modernas, construídas dentro de padrões internacionais de conforto e segurança. É sua a responsabilidade do cumprimento integral dos contratos com o Poder Público, evitando as armadilhas viárias que vitimam milhares de pessoas.

USUÁRIO: O Usuário da via pública deve respeitá-la, mantendo suas condições para que permaneça segura. Deve conhecer as condições da estrada, utilizando-a de maneira compatível com seu estado de conservação e de acordo com as normas estabelecidas para cada trecho, sempre considerando as condições climáticas do trajeto percorrido. Ë imprescindível que motoristas e pedestres partilhem a malha viária de maneira civilizada, como ditam os preceitos da direção defensiva.

PODER PÚBLICO: O Poder Público deve exercer ativamente sua função de mantenedor e desenvolvedor do projeto viário nacional. É fundamental a criação de um plano de transportes global no país, que sirva para analisar, criar e uniformizar as ações de promoção de segurança no Trânsito. Salienta-se que muitas grandes cidades nem mesmo têm um Departamento de Engenharia de Trânsito, deixando a função a cargo de Secretarias ocupadas por profissionais de outras áreas, que assumem o lugar por indicação política. É por este motivo que, muitas vezes, permite-se a construção de grandes obras viárias, com vasta quantidade de vícios e defeitos, formando verdadeiras armadilhas mortais para os usuários. A exemplo, mencionam-se, entre outros, a colocação de postes de iluminação e telefonia em áreas de escape de vias rápidas, arborização de canteiros centrais de avenidas, cruzamentos de vias rápidas não sinalizados, falhas nas sinalizações,.

Comenta-se também a omissão do Estado na fiscalização dos contratos de concessão e construção de vias públicas, permitindo que as obras sejam entregues aos usuários com inúmeras falhas de construção e Engenharia.

É fundamental, para que se encerre este verdadeiro genocídio, que a sociedade compreenda e adote, em diversas áreas e diferentes níveis, um conjunto global de medidas efetivas para a diminuição gradativa e constante da violência no Trânsito.

O Estado deve assumir seu papel ativo na alteração do Contexto Sócio-Comportamental, não restringindo apenas suas ações a operações de fiscalização de excesso de velocidade em feriadões e proibição da venda de bebidas alcoólicas pela porta da frente em estabelecimentos comerciais localizados às margens de rodovias. Há de ser realizada uma ampla e complexa discussão nacional para a revisão do Código Nacional de Trânsito, com destaque às opiniões de especialistas no assunto, com comprovado conhecimento nas matérias tratadas.

Reconhecendo e corrigindo falhas e omissões, o Poder Público pode transformar gradativamente as vias de tráfego em caminhos seguros. Fiscalizando e punindo, evitará atividades ilegais e inadequadas da iniciativa privada e dos condutores, incentivando comportamentos socialmente responsáveis no Trânsito.

Somente uma atitude firme, efetiva e comprometida, envolvendo Poder Público, sociedade e iniciativa privada, pode diminuir drasticamente a violência no Trânsito. Por incrível que pareça, é plenamente viável.











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