LIÇÕES DE SOCORRO
O alerta de quem vê a morte nas estradas
Antes de pegar a estrada para o feriadão de Ano-Novo, leia os conselhos e as histórias de socorro contadas pelos quatro homens desta reportagem. Ou melhor: aprenda com eles.Socorristas acostumados a agir em acidentes, eles ensinam pela sua experiência como o simples ato de trocar um CD pode ser fatal. Como uma curva malfeita pode interromper um feriado. Ou como o uso do cinto de segurança pode salvá-lo. Eles não têm lições teóricas para dar.
Falam da vida real, de quem ouve o grito de mães desesperadas que perderam um filho, de quem testemunha latinhas de cerveja espalhadas ao redor de dois cadáveres. Eles não querem assustar ninguém. Só querem que motoristas e passageiros dos 185 mil veículos que devem se dirigir ao Litoral entre hoje e amanhã possam chegar com tranquilidade.
Para que esse seja, de fato, um Feliz Ano-Novo.Apenas em rodovias federais, que fará a fiscalização durante a Operação Fim de Ano com 650 policiais e 76 bafômetros em todo o Estado, 120 mil veículos devem se deslocar ao Litoral. Nas estradas estaduais, a expectativa é de que 65 mil veículos rumem para as praias, vigiados por 168 policiais e 38 bafômetros integrantes da Operação Golfinho. A mobilização é para que todos voltem.
“Uma simples freada é fatal”
A imagem do corpo daquela menina estendida sobre o canteiro central não sai da sua cabeça. Ainda que o policial rodoviário federal José Blair Fernandes Tressoldi, 45 anos, tenha 13 anos de experiência e mesmo que o acidente tenha ocorrido há mais de uma década, a lembrança daquele resgate ficou eternizada. Era um dia típico de inverno, com pista molhada.
Ele não lembra exatamente o dia, não guardou o nome dos envolvidos, mas não esquece daquela moreninha de cinco anos, às margens do km 26 da BR-290, em Santo Antônio da Patrulha.A menina viajava com os pais e o irmão, no sentido Capital-Interior, quando seu pai perdeu o controle da Royale que dirigia, invadiu o canteiro central e capotou, próximo do meio-dia.
Como estava sem cadeirinha de segurança, a menina foi projetada contra o para-brisa e voou até o canteiro. Estatelou-se na grama.Acionado para atender o acidente, Tressoldi colocou a menina na maca e levou-a para o hospital de Osório. Nenhum dos outros três ocupantes do veículo sofreu ferimentos graves, o que Tressoldi atribui ao uso do cinto de segurança. Nunca mais o policial teve notícias dela, mas ele acredita que a menina tenha sobrevivido.
– É aquela velha história, uma criança solta dentro do veículo é igual a uma bola solta, vai para tudo o que é lado. Uma simples freada faz com que ela possa passar pelo meio, é fatal – alerta.No dia 31, a partir das 13h, Tressoldi estará de plantão no Posto de Osório, na BR-101, e não esconde a apreensão com o destino dos motoristas.
“As sobreviventes não se conformavam”
Um segundo de desatenção, uma tragédia que não se apaga. Em uma manhã na freeway, três jovens em férias iniciam uma jornada até Salvador (BA). Menos de 50 quilômetros de um total de 3 mil a percorrer, um grave acidente encerra a viagem. Na tentativa de trocar um CD por outro no aparelho de carro, a motorista perde o controle do veículo.
O choque lateral com uma árvore resulta na morte na passageira que estava sozinha no banco de trás. A tragédia na rodovia que liga a Região Metropolitana ao Litoral Norte ocorreu menos de uma hora depois da partida de casa.Médico da equipe de resgate da Concepa há 13 anos, Cid Gonzalez, 43 anos, esqueceu o ano da tragédia em meio a tantos salvamentos, mas manteve na memória as expressões dos rostos das duas jovens que sobreviveram ao acidente.
As três tinham na faixa dos 20 anos.– No local, constatei na hora o óbito da jovem que estava no banco traseiro. Ela foi ejetada contra a árvore e bateu forte a cabeça, tendo um sério traumatismo craniano. Havia desespero e um sentimento de culpa das demais pelo que tinha acontecido.
As sobreviventes não se conformavam – recorda Gonzalez.Experiente no atendimento a vítimas de acidentes de trânsito, o médico entende que todo incidente nas estradas pode ser evitado com medidas básicas de segurança.
Ao fim de dias tumultuados no trabalho, Gonzalez se entristece com as barbáries que presencia no trânsito gaúcho.– Tem de ser assim, não dá para levar essas coisas para casa, senão tu enlouqueces – relata o socorrista.
“A gente sofre com a dor dos outros”
É o fim de um plantão de domingo. O socorrista Itamar Kaller, 43 anos, reúne seus pertences para voltar para casa quando o telefone da ambulância toca, às 22h. Do outro lado, um homem pede ajuda para que a equipe de emergência salve três crianças e seis adultos feridos em um grave acidente na rodovia Gravataí-Taquara (ERS-020).O acidente que não sai da memória do socorrista aconteceu em 20 de setembro deste ano.
Um Corsa, um Tipo e um Vectra colidiram em uma curva. Quatro socorristas se dividem em duas equipes para identificar os casos mais graves. Há vítimas com fraturas expostas e um dos feridos está inconsciente.
– A gente se imagina naquela situação, quer fazer o mais rápido para amenizar o sofrimento da pessoa – afirma o socorrista.De plantão na sexta deste feriadão de Ano-Novo, tem esperança de não ser chamado para atuar em novas tragédias no trânsito.
No sábado passado, em pleno feriadão de Natal, o último socorro na ERS-030. Um motociclista fez uma conversão proibida que resultou no engavetamento de quatro carros, com três pessoas feridas sem gravidade.– Não gostaria de ver isso novamente no Ano-Novo. A gente se prepara para isso, mas também sofre com a dor do outro – diz Itamar.
“Todos os acidentes marcam muito”
Não é apenas porque um menino de oito anos, que havia sobrevivido a um tornado que matou seu irmão gêmeo em Antônio Prado cinco anos antes, morreu naquele acidente.
Nem porque outros dois jovens sucumbiram à colisão frontal entre um Gol em que estavam e o Vectra em que o menino viajava, na Estrada do Mar, em Torres.A tragédia daquele 16 de fevereiro do ano passado ainda atormenta o sargento Flávio Bastos da Veiga, 45 anos, como um exemplo da imprudência que mata.
Mais do que as lembranças da criança machucada, do choro desesperado da mãe no hospital, dos dois jovens presos às ferragens, o policial estadual guarda as cenas das latinhas de cerveja que estavam no Gol.A colisão interrompeu a viagem de uma família que retornava para Torres depois de passar o sábado em Curumim. Em segundos, o menino que dormia no banco traseiro já havia sido arremessado para fora do veículo.
No hospital, o sargento ouvia os gritos transtornados da mãe, que perdia o segundo filho para um acidente.– Ela gritava, chorava, estava em desespero, entrou em pânico. Todos os acidentes marcam muito, mas quando envolve uma criança, a gente não esquece. O pior é que os jovens do outro carro estavam bêbados e em alta velocidade, senão não teriam invadido a pista daquele jeito – conta Veiga.
Fonte: zero hora, 30/12/09