Salta aos olhos de quem quer que percorra as cidades ou as estradas brasileiras que o principal fator de violência no trânsito não é nenhuma deficiência técnica. A verdade é que a freqüência dos acidentes em nosso país se deve principalmente ao fato de que nem sequer as mais elementares regras de segurança no trânsito são obedecidas ou sancionadas. Os motoristas simplesmente desprezam a sinalização, cometendo corriqueiramente infrações que em outros países são consideradas gravíssimas. É comum, por exemplo, verem-se automóveis correr em velocidade duas vezes maior do que a permitida por lei, avançar o sinal vermelho, ultrapassar pela direita, percorrer ruas pela contramão etc.
Esse comportamento perigoso costuma ser simplesmente ignorado pelos
policiais, que parecem encarar qualquer preocupação com infrações de tráfego
como indigna de sua atenção. Corre até a história -- no mínimo, bene
trovata -- segundo a qual, alguns anos atrás, um chefe de polícia do Rio
chegou a recomendar, 'por razões de segurança', isto é, para evitar assaltos,
que os motoristas desconsiderassem os sinais vermelhos a partir de certa hora da
noite. Pergunto-me se alguém pode sinceramente acreditar que, em virtude de
semelhantes 'razões de segurança', salvam-se mais vidas do que se perdem.
Mas não apenas a polícia não age como não é pressionada pela sociedade para
agir. Ao contrário: enquanto em muitos países o motorista infrator é censurado
por outros cidadãos, aqui aquele que respeita a lei é que pode contar com a
reprovação ostensiva dos demais motoristas. Se ele parar a qualquer hora ante
determinados sinais vermelhos, por exemplo, ou em determinadas horas ante
qualquer sinal vermelho, ouvirá no mínimo buzinadas e insultos.
Tudo se passa, portanto, como se as infrações de trânsito fossem meros
pecadilhos e as leis correspondentes, de somenos importância. Quando
interpelados, alguns infratores racionalizam o seu comportamento com a alegação
de que, em país em que tantas leis mais sérias são infringidas
impunemente, há algo de frívolo na preocupação com leis de trânsito. Embora eu
considere que os cinqüenta mil mortos por ano em acidentes de trânsito no Brasil
já refutem eloqüentemente esse tipo de sofisma, quero também aduzir aqui certas
razões, raramente mencionadas, de outra natureza.
Está longe de ser uma verdade incontestável que todas as leis positivas
correspondam ao interesse geral e que não favoreçam ou prejudiquem qualquer
segmento particular da sociedade. Embora as leis que protegem o patrimônio, por
exemplo, se apliquem a todos indiscriminadamente, é precisamente enquanto o
fazem que se manifesta o fato de que não interessam na mesma medida a indivíduos
de todas os segmentos sociais. Como dizia Anatole France, “a lei, em sua
igualdade majestosa, proíbe tanto os ricos quanto os pobres de dormir debaixo de
pontes, mendigar nas ruas e roubar pão”. Summum ius, summa iniuria. Para
alguns, a universalidade formal do direito não faz senão ocultar o fato de que
ele é determinado pelas condições materiais e os interesses particulares da
classe dominante. "Na lei", dizia, por exemplo, Marx, "os burguêses precisam
dar-se uma expressão universal precisamente enquanto dominam como classe".
Independentemente de concordarmos com essa tese, o fato é que ela é muito mais
defensável no que toca a alguns conjuntos de leis, tais quais, segundo o próprio
Marx, o direito civil e o direito penal, do que a outros.
Já os regulamentos de trânsito não são suscetíveis de semelhante
relativização. É verdade que constituem um fenômeno recente na história da
humanidade, surgindo no século XIX, com o crescimento urbano, e se impondo
definitivamente no século XX, a partir da revolução automotiva. Nesse instante,
porém, são adotados por motivos puramente racionais, do ponto de vista do
interesse geral. Sua finalidade manifesta é restringir no espaço público a
liberdade de locomoção ou estacionamento apenas enquanto isso se faz necessário
para garantir um mínimo de segurança tanto para quem se locomove -- em veículo
ou a pé -- quanto para quem permanece estacionado. Em outras palavras, é
justamente para garantir a cada um e a todos a máxima liberdade de se locomover,
compatível com o mínimo de ameaça para a segurança própria e alheia, que, em
logradouros públicos, a locomoção de todos é submetida a um mínimo de restrições
convencionais. Uma vez que qualquer atentado contra a segurança de alguém é
também um atentado contra a sua liberdade de se locomover, podemos redefinir os
regulamentos de trânsito como convenções sistemáticas cuja função é
compatibilizar formalmente a liberdade de locomoção de todas as pessoas, através
da contenção da locomoção individual no interior dos limites de sua possível
universalização. Se, no enunciado que acabamos de fazer, substituirmos a palavra
'locomoção' pela palavra “ação”, estaremos dando uma formulação do próprio
conceito puramente racional e universal do direito, tal como Kant o revelou. O
regulamento do trânsito não passa, portanto, da aplicação direta do princípio do
direito à esfera da locomoção no espaço público.
Em outras palavras, toda lei é tanto mais legítima -- creio que devíamos
mesmo dizer, tautologicamente: toda lei é tanto mais legal -- quanto mais se
assemelha à lei de trânsito. Portanto, o respeito ao princípio do direito
implica no respeito às leis de trânsito. Ora, se, concebido de modo puramente
formal, o sentido do direito é garantir a liberdade de cada um na medida em que
ela pode coexistir com a liberdade de qualquer outro segundo uma lei geral, pode
dizer-se sem exagero que a sociedade que não é capaz de respeitar efetivamente
suas próprias leis de trânsito não chega ser uma sociedade de seres humanos
livres. Sem dúvida não é por acaso que nos países onde se preza a liberdade
também se respeitam as leis de trânsito (embora o converso não seja
necessariamente verdadeiro) e nos países onde não se observam as leis de
trânsito tampouco se preza a liberdade (embora, de novo, o converso não seja
necessariamente verdadeiro). Nesse sentido, as leis de trânsito são pelo menos
tão sérias quanto quaisquer outras.
Nem todas as leis são igualmente desrespeitadas, no Brasil. Podemos dizer,
ademais, que não é o desrespeito a qualquer lei que é percebida pelo público ou
pelas autoridades com o mesmo descaso. Apesar das falhas notórias da polícia e
do judiciário brasileiros, as prisões estão abarrotadas e o mesmo público que
pouco caso faz da violência no trânsito não deixa de vociferar nas ruas e na
imprensa a favor de maior violência punitiva contra ladrões, assaltantes ou
traficantes. Por que essa diferença de atitude? Uma explicação se oferece
imediatamente. O acidente de trânsito é normalmente tomado como uma fatalidade.
A própria palavra 'acidente' sugere esse sentido. Afinal, ninguém tem
'realmente' culpa por uma morte `acidental'. De fato, a possibilidade do
acidente, na acepção de "acontecimento casual, fortuito ou imprevisto", não pode
ser eliminada do mundo em que vivemos. Nesse sentido, exceto nos raros casos em
que, por exemplo, alguém deliberadamente atropela outra pessoa, toda violência
do trânsito pode ser caracterizada como acidental. A violência praticada pelo
bandido, por outro lado, é deliberada. Ora, não se pode pedir a mesma indignação
com relação a um crime culposo que se tem com relação a um crime doloso.
Contudo, na medida em que tudo isso seja verdadeiro, o é não apenas no Brasil
mas em toda parte do mundo. Não consegue portanto, explicar uma displicência
especificamente brasileira. Além do mais, em última análise nada disso é
relevante. Não há quem não esteja ciente da verdade óbvia de que, se a taxa de
imprevisibilidade desastrosa não pode ser eliminada, pode ao menos ser
substancialmente reduzida com a simples observação das leis de trânsito. Ora,
outros povos tomam providências no sentido de implementar efetivamente tais
leis. Se não o fazemos, não há como escaparmos da acusação de que há má fé, de
que há dolo em nossa negligência.
Não é segredo para ninguém que, num país em que apenas uma fração da
população é efetivamente alfabetizada, apenas uma fração dessa fração constitui
uma espécie de patriciado que legisla ativamente e em última instância determina
que leis 'pegarão' e que leis serão apenas 'para inglês ver'. Pois bem, os
agentes da violência criminal, associada a roubos ou a lutas por controle de
pontos de drogas, por exemplo, provêm principalmente dos grupos mais destituídos
dos benefícios da cidadania, que constituem uma espécie de plebe. Embora seja
também entre tal plebe que se encontra a maior parte das vítimas desse
tipo de violência, um número cada vez maior se conta entre o patriciado. Não
admira que, na imensa maioria dos casos, as leis penais não se aplicam senão à
plebe.
Em depoimento ao Viva Rio, a Dra. Maria Lúcia Karam ressaltou que "se, aos
menos favorecidos, a pena (especialmente a privativa de liberdade) é aplicada
sem hesitações, constata-se, inversamente, um sentimento de incômodo dos juízes
em relação aos indivíduos que, provenientes das camadas médias e superiores, são
vistos como seus iguais." Ou seja, a lei penal não se aplica sem hesitação senão
aos 'inferiores,' isto é, à plebe. Ela se encontra deslocada quando aplicada aos
'iguais'. Assim, segundo o Censo Penitenciário do Ministério da Justiça
realizado de janeiro/92 a abril/93, citado pela Dra. Karam, 95% dos 126.152
presos brasileiros viviam, no momento da prisão, em situação de pobreza
absoluta. "Quem vai para a cadeia não é aquele que comete crime," declarou a
Dra. Julita Lengruber ao Viva Rio: "quem vai para a cadeia é quem comete crime e
é preto, pobre, analfabeto e sem trabalho fixo."
A Dra. Lengruber lembrou também que os membros do patriciado "articulam
relações nas mais variadas instâncias de modo a nunca serem punidos com a
privação da liberdade." Isso significa que o segmento social que produz e
implementa a legislação penal o faz, na prática, para outros segmentos sociais,
não para si mesmo. Em outras palavras, há, na prática, um segmento ao qual as
leis penais são aplicadas e um segmento que as aplica. Sendo assim, nenhum
desses dois segmentos pode ser considerado como autônomo, isto é, como capaz de
dar leis a si próprio: o primeiro, porque não produz as leis pelas quais é
julgado e o segundo, porque não é julgado pelas leis que produz. Tendo isso em
mente, se considerarmos que, no caso do trânsito, tanto o agente quanto a vítima
de violência pode pertencer a qualquer classe social e, freqüentemente, aquele
pertence ao estrato dos patrícios e esta, à plebe, teremos entendido que a
impunidade no trânsito não passa de um caso particular da incapacidade geral de
autonomia da sociedade brasileira. Complementemos essa interpretação observando
que, no Brasil, não apenas no plano econômico a indústria automobilística é
central mas, no imaginário brasileiro, o automóvel ocupa um lugar nitidamente
privilegiado, como atestam tanto a temática da obra do cantor nacional, Roberto
Carlos, quanto o número excepcional de campeões de fórmula 1 que aqui se
produzem. Não será esse rodoviarismo devido, em parte, ao fato de que a
diferença entre os privilegiados e os destituidos se exprime através da
diferença entre motorizados e pedestres? Aparentemente, dirigir um carro veloz
representa, para muitos, acesso instantâneo aos atributos reivindicados pelo
patriciado: modernidade, status, potência, poder e (por que não?) impunidade.
Por oposição, o pedestre represnta a devagar e desprezível carência de
todas essas qualidades. Não admira que se percebam como quase anti-naturais as
restrições ao trânsito de automóveis, principalmente quando visam à proteção dos
pedestres.
Por pouco não dissemos que a impunidade no trânsito constituia um
sintoma da incapacidade de autonomia da sociedade brasileira. Uma vez
porém que o sintoma pertence à ordem dos efeitos, isso poderia insinuar que é
inútil tentar resolver-se o problema da anomia no trânsito antes de se
resolverem outros problemas mais fundamentais. O economicismo de esquerda pensa
assim. O de direita também pensa assim, com a diferença de contar com uma noção
ainda mais vulgar do fundamento. Penso o oposto. Mesmo segmentos cada vez
maiores do patriciado dão-se conta de que não vale a pena abrir mão da cidadania
autêntica em troca de privilégios espúrios. A instauração efetiva do princípio
formal do direito, ainda que 'apenas' no plano do trânsito, seria um progresso
mais real e de maior conseqüência do que qualquer desenvolvimento que pudesse
ser representado pelas variações dos índices econômicos.