Jornal Zero Hora pediu a opinião de três especialistas sobre alguns dos principais resultados da pesquisa divulgada pelo Departamento Estadual de Trânsito (Detran):
Especialistas apontam educação contínua e fiscalização mais rígida para pacificar ruas e estradas do Estado:
Carlos Salgado: presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas (Ab ead) e membro da Associação de Psiquiatria do RS
Eduardo Cortez Balreira: consultor técnico do Sindicato dos Centros de Formação dos Condutores do RS
Ricardo Schiavon: arquiteto com especialização em segurança no trânsito e coordenador do Movimento Gaúcho pelo Trânsito Seguro
69,1% dos gaúchos não se consideram imprudentes ao volante, e 88% reclamam do comportamento dos demais.
Por que o motorista gaúcho expressa esta contradição?
Carlos Salgado: É muito mais fácil observar o outro do que a si mesmo. Quando somos questionados sobre habilidades, como a forma de trabalharmos e dirigirmos, por exemplo, tendemos a fazer um juízo favorável de nós mesmos. É uma defesa da autoestima.
Eduardo Cortez Balreira : As pessoas se protegem. Por isso, a primeira opinião é que sempre a culpa é do outro.Esse número de 69% é muito alto, deveria ser muito mais restrito. As causas dos acidentes e dos problemas no trânsito mostram outra realidade. Se as pessoas tivessem consciência de si mesmas, os números seriam outros. A cultura no trânsito não está formada, um dos exemplos é a falta de respeito com a faixa de pedestres.
Ricardo Schiavon:Mas será que as pessoas, no dia a dia, admitem o erro? Será que não é mais fácil colocar a culpa no outro? Em geral, as pessoas já carregam isso nas suas vidas. Sempre são os outros os culpados. Faz parte da nossa cultura.
71,4% dos motoristas dizem que a sua maior preocupação no trânsito é a falta de consciência do condutor.
Seria uma característica do povo gaúcho não assumir responsabilidades? Isto se reflete no trânsito?
Carlos Salgado: Eu aposto que canadenses, javaneses e outros povos sejam iguais neste aspecto.Esse juízo fraco das nossas atitudes é comum em todo o mundo. Ter autocrítica com habilidades que mexem com a autoestima é um grande desafio. É se dar conta de uma limitação, e isso nem sempre é fácil.
Eduardo Cortez :Não acho que seja uma cultura só gaúcha.Em geral, as pessoas criam todo um perfil em torno do veículo. Ele lhe dá poder, autoridade e pode significar ser destacado dentro de um grupo social. Sentimentos como esses podem conduzir a respostas como essa. É um condicionamento de natureza psicológica, é mais fácil e simples atrelar a culpa ao outro.
Ricardo Schiavon: É contraditório, botamos a culpa nos outros de que falta consciência e não admitimos o erro.Além disso, a fiscalização é complicada também.O motorista diz que não excedeu a velocidade,mas é pego por um radar, tem a foto e vê que ultrapassou o limite, sim. E, quando é pego no flagrante, diz: “Seu guarda, eu só estava um pouquinho acima da velocidade”.Tudo tem uma desculpa.
90,6% dos condutores dizem que não tiveram nenhuma multa nos últimos 12 meses.
É a impunidade que gera a agressividade no trânsito?
Carlos Salgado:A transgressão ocorre a todo momento.Quando você caminha pela rua, você vê. Ela não está registrada nessa estatística porque falta fiscalização. E essa falta certamente contribui para a repetição da infração, que aumenta com o problema de um trânsito cada vez mais caótico.
Eduardo Cortez : Acredito que tenha uma relação, pois a impunidade tem um reflexo condicionante direto, que é no bolso. O código de trânsito é muito complacente. As multas deveriam ser mais expressivas como são em outros países. Por exemplo, a Alemanha, onde a pessoa vai para julgamento na mesma hora.Podemos ver na Lei Seca. A queda na fiscalização aumentou o número de acidentes.
Ricardo Schiavon: Se tivéssemos fiscalização em todas as esquinas,com certeza o número de infrações se reduziria. Falta fiscalização maior para ser pegono flagrante. Assim, quem sabe, o motorista poderia se dar conta de que a culpa é dele, e não do outro. A fiscalização educa, não apenas porque dói no bolso. Se souber que existe fiscalização,a pessoa vai pensar duas vezes antes de desrespeitar a lei. Mas é claro que a conscientização tem de estar em primeiro lugar.
33,3%dizem que foram punidos por excesso de velocidade.
Que tipo de punição surtiria mais efeitos?
Carlos Salgado:Para situações de extremo risco, como excesso de velocidade, deveria ser aplicada a suspensão do direito de dirigir. A situação de risco é total, principalmente pela recorrência da infração. Se a pessoa volta a repetir o erro,a punição deveria ser mais justa, com multas crescentes. Pagar uma quantia em dinheiro muitas vezes não é o suficiente. Mas claro que isso só faz sentido se a fiscalização funciona.
Eduardo Cortez :Essa questão é variável. Suspensão da carteira de motorista poderia ser uma boa ideia.
Ricardo Schiavon:Aumentar os valores da multa não seria a solução. Tem é de se ter conscientização de que excesso de velocidade é perigoso. A fiscalização mais efetiva é que tem mais resultado,não importa o valor da multa. Se, em uma viagem de longo percurso, eu souber que há fiscalização e eu for flagrado duas, três vezes,na próxima viagem não vou fazer de novo.Isso faz com que os condutores pensem e cumpram mais a regra.
Entre 3h30min e 4h, nos finais de semana e com ingestão de álcool ocorrem os acidentes, segundo os especialistas.
Que tipo de alteração de comportamento pode haver em uma situação assim? De que forma pode ser evitada?
Carlos Salgado:A redução na desenvoltura psicomotora cai bastante, a pessoa erra mais. O juízo crítico é diminuído, tanto para a escolha do parceiro da noite quanto para a velocidade máxima em uma via. Piora a avaliação de risco,o que causa o erro e os acidentes. Não podemos esquecer que certos remédios e drogas também têm esse efeito.
Eduardo Cortez :Consciência e punição é a solução. Ao perder parte do bom senso, também se perde a noção de espaço e de respeito ao próximo. Mais campanhas, cursos com mais ações que ataquem a alcoolemia podem ajudar. Alguns aspectos do Conselho Nacional de Trânsito estão defasados. As aulas estão ultrapassadas.Elas poderiam tratar do problema do álcool.O código poderia educar e com isso ajudar a consolidar a consciência dos motoristas.
Ricardo Schiavon: Temos a cultura do beber: bebe-se porque o time ganhou, porque o time perdeu. O jovem pensa que nada acontece com ele. Em um final de semana, no final da noitada, que tipo de perfil está ali? São jovens? Se sim,sabe-se quais são os lugares a atacar. Uma barreira no final de noite pode coibir consideravelmente as infrações. A questão do trânsito ainda cai na banalidade. Estamos estudando como fazer para mudar esse comportamento.
Apenas 17,3% dos condutores gaúchos têm curso superior completo.
O grau de instrução pode ser indicativo de agressividade ao volante?
Carlos Salgado:Pessoas com mais desenvolvimento cognitivo,em geral, tendem a ter maior avaliaçãode risco. Mas isso não é uma regra.Não podemos esquecer que o álcool e as outras drogas deixam todas as pessoas no mesmo nível.
Eduardo Cortez :Não deve ser. Porque essa educação da qual estamos falando é a educação de berço. Não vejo relação com o grau de instrução.
Ricardo Schiavon: O grau de instrução, nas suas devidas proporções,faz com que a sua vida seja mais agitada. Tem alto nível de estresse. Um executivo, por exemplo, está no trânsito e recebe uma ligação, atende, dirige distraído pensando no trabalho. Acho que pode haver uma certa influência, mas não tenho conhecimentode relação entre nível de escolaridade e acidentes.
50% dos entrevistados adotam como medida de segurança prever o comportamento do outro.
Se todo mundo se preocupar com a atuação do outro, corre o risco de esquecer de adotar mecanismos próprios de boa conduta na direção.Não dá mais trabalho?
Carlos Salgado:Eu acho que o indivíduo que consegue prever a atitude do outro consegue ter controle da própria. É extremamente positivo ter uma atitude defensiva no trânsito.
Eduardo Cortez: Essa preocupação e esse número estão adequados para mim. Você deve ter um percentual de atenção no que você está fazendo e outro igualmente alto no que o outro está fazendo.
Ricardo Schiavon: A direção defensiva é um aspecto de segurança no trânsito, mas temos de trabalhar muito com a cidadania. Se tiver conceitos sobre direitos e deveres mais presentes, não vou passar a responsabilidade para o outro. É questão de solidariedade, respeito, amizade. Assim,tudo pode ser mais tranquilo. Temos de criar as pessoas para que sejam bons cidadãos em casa, respeitem idosos e animais. Trânsito é gerenciar conflitos físicos e políticos.
Aponte três soluções para mudar a mentalidade dos motoristas:
Carlos Salgado:Retomar a fiscalização da alcoolemia dos motoristas, de forma frequente. Pode ser por amostragem, em pontos críticos da cidade.Em segundo, a promoção de ações de educação continuada mais rigorosas. Os condutores devem ser checados na prática,em reciclagens periódicas, por um profissional especializado. E melhorar a qualidade das estradas e da sinalização. Até o pardal é bom, desde que seja bem sinalizado.
Eduardo Cortez:O esforço legal deve ser maior. Acredito que devemos ter mudanças na legislação de trânsito em vários tópicos. Devemos ter mais campanhas de conscientização.A educação para o trânsito deveria começar na escola. O tempo de aula nos CFCs é muito pouco. Para mim, isso é uma grande falha.
Ricardo Schiavon: Respeito, compreensão e paciência. Se tivermos isso, vai se refletir no trânsito.
Fonte: zero hora, 2010.